Longe do mainstream

via Jornal da Unicamp

O conceito de ensaio no cinema vem sendo debatido mais intensamente no Brasil nos últimos cinco anos, mas ainda é quase total a ausência de bibliografia a respeito, limitando-se a textos esparsos. “O ensaio no cinema: formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea” (Hucitec Editora) é o primeiro livro que procura cobrir a multiplicidade de temas a ele relacionados, organizado pelo professor Francisco Elinaldo Teixeira, do Departamento de Cinema do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Trata-se de uma coletânea de textos de 14 autores locais e internacionais em torno da reflexão e da prática do filme-ensaio.

Eli Teixeira explica que o conceito de ensaio no cinema remonta ao período clássico, nos anos 1920, quando dos debates que estabeleceram três grandes domínios: a ficção, o documentário e o cinema experimental de vanguarda. “Esse quarto domínio – o ensaio na forma que sugerimos hoje – vai conquistar terreno no período moderno do cinema (pós-guerra), mas ainda na condição que chamo no livro de proto-ensaio: o conceito passa a ser proposto, no âmbito da teoria e da história do cinema, dentro do campo do documentário – e depois como parâmetro para a análise de filmes (filmes-ensaio).”

Segundo o organizador da coletânea, a discussão começou a ganhar corpo no Brasil no início dos anos 2000, com o advento da cultura digital. “Este livro entra na história e na teoria do cinema através de grandes temas da atualidade: a questão da performance, que vem das artes cênicas e que estamos nos esforçando em traduzir para o campo das artes visuais; do sound design (desenho sonoro), visto que hoje é praticamente impossível analisar um filme sem considerar a construção da imagem sonora; do live cinema (cinema ao vivo), em que o processo de criação e de edição se expõe ao vivo, com a presença junto ao público do realizador e de toda a parafernália técnica; e, por fim, do conceito de ensaio, tanto na teoria (cine-ensaio) quanto na prática fílmica (filme-ensaio).”

Eli Teixeira observa que o filme-ensaio não conta uma história, embora tome muito como referência a ficção, o documentário e o experimental, sobretudo esses dois últimos. “Ele discute e problematiza idéias, trata das circunstâncias e estados de espírito do processo de realização, incluindo sempre o realizador, seja em corpo, seja em voz – traz para primeiro plano o olhar subjetivo do ensaísta, criando um circuito entre o eu e o mundo, o público e o privado. Em termos de construção, sua consistência é heterodoxa, apropriando-se do material dos outros três domínios, mas sem a pretensão totalizante, é sempre uma espécie de work in progress (trabalho em progressão), uma obra aberta. É uma linha de fuga em relação à concepção tradicional de cinema: o pensamento é o foco. Por isso, o filme-ensaio possui um circuito bastante restrito e alternativo, sobretudo dos museus e galerias e de mostras que fogem do cinema mainstream.”

O professor da Unicamp organizou o livro em duas partes, a primeira intitulada “Lapidando um conceito: cartografias do ensaio no cinema”, reunindo sete textos mais teóricos. “Há uma série de convergências e divergências sobre como compor o conceito deste quarto domínio, que diz respeito à cultura pós-moderna. É um desafio que advém de um grande momento de inflexão dos parâmetros da imagem, primeiro com a emergência da imagem-vídeo e depois com a irrupção da imagem digital. Isso trouxe uma série de facilidades para o realizador, sobretudo a possibilidade de inclusão do seu entorno, da sua intimidade – o filme-ensaio vai trabalhar muito nessa fronteira entre o privado e o público.”

A segunda parte da antologia – “Balizando um conceito: o filme-ensaio e a diversidade de suas práticas” – contém seis textos investigando de vários ângulos a materialização do ensaio por diferentes realizadores contemporâneos. “Na obra se articulam cine-ensaio e filme-ensaio, ou seja, o conceitual e a prática fílmica. Os conceitos do cinema sempre pressupõem um corpus de filmes que os sustentam, numa maneira de retirar da abstração uma conotação de operação meramente especulativa e, desse modo, por demais difusa para se converter em instrumento analítico eficaz. No momento realizo uma pesquisa, específica sobre a produção ensaística no cinema brasileiro, que vai resultar em outro livro.”
O professor Francisco Elinaldo Teixeira, organizador do livro: “Na obra se articulam cine-ensaio e filme-ensaio, ou seja, o conceitual e a prática fílmica”
De acordo com Eli Teixeira, um grande debate ocorrido no contexto internacional foi do filme-ensaio como uma derivação do documentário, que se alimentaria intensamente deste domínio e também dos procedimentos experimentais. “A revolução tecnológica propiciou inúmeras experimentações das vanguardas, a partir das quais surgiram os filmes-ensaio. Aqui no Brasil se deu algo parecido, com seu nascimento ligado à década bastante experimental dos 70, a forte conexão com o documentário nos 80 e trocas intensas com esses dois domínios dos 90 para cá. O conceito de cinema experimental tinha desaparecido por conta de querelas do debate entre modernidade e pós-modernidade e é importante trazer esta discussão de volta.”
“O Ensaio no Cinema: Formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea” foi lançado oficialmente primeiro em São Paulo, no dia 25 de setembro, e no dia 22 de outubro, durante o Congresso Anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), que teve sua 19ª edição realizada na Unicamp. O lançamento de livros é uma tradição deste evento, onde foram apresentados trabalhos de professores, pesquisadores, mestrandos e doutorandos, além de palestras e mostras de filmes.
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Os autores
Alfredo Suppia
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Multimeios e professor do Departamento de Cinema (Decine) da Unicamp
Antonio Weinrichter López 
Escritor e programador cinematográfico, atual-mente professor associado da Universidade Carlos III de Madri (Espanha)
Candida Maria Monteiro 
Doutora em design pela PUC-Rio, onde é pesquisadora e professora do Departamento de Comunicação.
Carlos Ebert
Diretor e fotógrafo de cinema, televisão e pu-blicidade, membro da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC)
Cecília Mello
Professora de cinema na Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), doutora em cinema pela Universidade de Londres
Francisco Elinaldo Teixeira
Chefe do Departamento de Cinema, professor na graduação em Midialogia e na pós-graduação em Multimeios do IA/Unicamp, organizador do livro
Gilberto Alexandre Sobrinho
Professor de televisão, cinema e vídeo no IA/Unicamp; professor visitante na Universidade de San Francisco (EUA)
Henri Arraes Gervaiseau
Cineasta e professor da ECA/USP e professor convidado pela Université Sorbonne Nouvelle Paris III
Ismail Xavier
Professor aposentado pela ECA/USP, membro do Conselho Consultivo da Cinemateca Brasileira
Joel Pizzini
Cineasta, pesquisador e professor da PUC/RJ e da Faculdade de Artes do Paraná, foi artista residente da Unicamp
Marcius Freire
Professor associado (livre-docente) do Departamento de Cinema e da Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp
Robert Stam
Professor da Universidade de Nova York, lecionou na Tunísia, na França e no Brasil (USP, UFF, UFMG)
Rodrigo Gontijo
Artista multimídia, pesquisador e documentarista, doutorando e mestre em Multimeios pelo IA/UNICAMP
Sarah Yakhni

Cientista social, documentarista, cineasta premiada como diretora e roteirista, doutora em Multimeios pela Unicamp

 

Fotos: DivulgaçãoAntoninho Perri

Edição de Imagens: Fábio Reis