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Estamos acostumados às obras públicas do artista ítalo-brasileiro Lélio Coluccini (1910-1983) graças a sua presença na paisagem urbana de Campinas. Obras como a Princesa do Oeste, do monumento do Bicentenário de 1974, no Largo das Andorinhas, e todo o conjunto escultórico tumular presente no cemitério da Saudade deram a Coluccini um lugar de destaque na cultura visual da cidade. A arte moderna pode ter rompido com tradições como a da perspectiva, a da representação da realidade ou com a noção de escultura como monumento, mas o aspecto vital da relação do homem com o mundo, o espaço, não deixou, por isso, de ser uma questão inerente à criação artística, e Coluccini investiu no espaço público para ocupá-lo ora com o comedimento próprio da encomenda burocrática, ora com uma potência poética ímpar, cujo exemplo mais evidente é o famoso O Monumento as andorinhas, de 1957, hoje em frente ao Museu de Arte Contemporânea da cidade.
Todavia, há uma outra face da produção do escultor, com a qual pouco se tem tido contato nos últimos anos. Trata-se das obras de pequeno formato, frequentemente destinadas às coleções privadas, de forte apelo decorativo e de dimensões domésticas. Obra premiada no Salão Paulista de Belas Artes de 1942, Baiana, um bronze do início dos anos 40, é um exemplar dessa faceta, em que podemos encontrar alguns elementos estilísticos comuns às obras voltadas ao espaço urbano.
Nascido na Itália, Collucini fixou-se definitivamente no Brasil no início dos anos 30. Seu contato com a escultura deu-se por meio da tradição familiar, dentro do ateliê montado na Marmoraria Irmãos Collucini, logo após seu retorno ao Brasil, em 1931. Nesse aspecto, o artista estava inserido na tradição italiana marmorista, que transformou o interior paulista numa reserva de mercado, quase que exclusivamente, dos imigrantes oriundos daquele país, como demonstra-nos a pesquisa de Maria Elizia Borges.
Essa tradição matizou a produção de Collucini em dois pontos essenciais: seu apreço pela arte sacra e seu gosto pelo decorativo, ambos derivados da demanda mercadológica. Demanda que poderia ter se tornado no Brasil um motivo para a perpetuação de uma linguagem convencional e edificante, própria das esculturas tumulares, dos volumes densos e evocativos e dos conjuntos repetitivos. Não que tais características não estejam presentes em algumas, mas elas não representam a busca pela linguagem formal modernista e a variedade obtida pelo artista.
Na Baiana encontram-se três apropriações executadas pelo artista a partir dos anos 40. Nela temos uma linguagem com tratamento geometrizante, muito próximo da linguagem cubista e das demandas então latentes do chamado art déco, cujas formas sinuosas e angulares Constantin Brancusi levou ao paroxismo da modernidade.
Outro aspecto que sobressalta em parte considerável de sua obra, mas aqui é apenas um elemento secundário, é sua leitura expressionista, que o leva a alongar suas figuras de modo a assegurar uma expansão ascendente das formas anatômicas, algo que acontece mesmo em obras de caráter horizontal, como no soldado do Monumento aos Revolucionários de 1932, em São José do Rio Preto. Na Baiana, uma linha elíptica cria uma diagonal que preserva o impulso à verticalidade.
Num terceiro elemento, a Baiana apropria-se do vocabulário que funde as contemporâneas discussões de gênero com uma tipificação da mulata brasileira, uma representação clichê. Paradoxalmente, essa mesma representação parece funcionar como uma visão ancestral mais refinada, evocativa das representações dos corpos afro-descendentes em uma potência quase religiosa; não por acaso Emanoel Araújo selecionou a obra para participar da mostra “Negro de Corpo e Alma”, realizada dentro do megaevento “Brasil+500 – Mostra do Redescobrimento”, em 2000.
Enquanto a escultura pública de Coluccini mergulhou no caráter descritivo ou sacro, as obras “privadas” podem possuir uma vida de forte conotação erótica. Nesse aspecto, Baiana é um intrigante “entre-lugares”. Aos nossos olhos ela inspira-nos a uma leitura que a aproxima da estética kitsch – o que lhe confere uma contemporaneidade –, e a alusões à sensualidade feminina entre-guerras, que vai de Carmem Miranda à Josephine Baker.
É pena que Collucini não tenha, ainda, recebido uma pesquisa profunda e ampla de sua obra. Sua carreira está imbricada entre os dois grupos antagônicos das artes campineiras – os acadêmicos tardios e os primeiros modernistas. Era admirado por ambos; de Aldo Cardarelli a Mário Bueno. E mais, toda uma produção escultórica espalhada por dezenas de coleções privadas precisaria ser inventariada e divulgada. Seria um bom presente de 100 anos para um artista que, literalmente, deixou suas marcas nas artes visuais da cidade.
BORGES, Maria Elizia (2002). Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: C/Arte.
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[Emerson Dionísio] |
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