O objetivo desta tese advém do interesse em refletir e aprofundar o tripé de relação entre artista, obra e os processos de mediação com o espectador, considerando como pesquisa a prática e outras formas de comunicação fora da caixa preta. Como artista da dança, diretor da T.F. Cia de Dança e pesquisador na área das artes cênicas, este estudo surge a partir da experiência artística, associada ao aprofundamento da pesquisa realizada coletivamente pelo núcleo desde 2002.
Nos últimos anos, a T.F. Cia de Dança esteve focada na investigação da relação corpo-cidade, no desenvolvimento de metodologias que envolvem a dança urbana contemporânea e no aprofundamento de outras possibilidades de mediação entre artista-obra-público, tema também desenvolvido na dissertação de mestrado “O corpo e o jornalismo cultural nos processos de mediação com o espectador”, defendida em 2015 no Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP).
Os interesses artístico-acadêmicos foram desdobrados, e o recorte proposto para esta tese de doutorado concentra-se em investigar as relações entre processos de criação em dança, escolhas estético-dramatúrgicas e o papel do público em obras fora da caixa preta, partindo dos pressupostos da Prática como Pesquisa (Practice as Research) (NELSON, 2013) e investigando o conceito de zona cinzenta[1] (BISHOP, 2018).
Uma das hipóteses considera a possibilidade que trabalhos que estejam fora da caixa preta, possivelmente numa zona cinzenta, provoquem no espectador outras formas de fruição, requisitando maior autonomia, mais assemelhada ao que ocorre nas experiências do cubo branco, porém, ainda com as características de uma obra cênica de dança.
O multiperspectivismo, a temporalidade, a simultaneidade de ações e a relação com dispositivos móveis são alguns dos aspectos elencados pela autora Claire Bishop como características de obras e artistas que se situam nessa zona cinzenta; tais experiências foram estudadas e aplicadas na prática por meio de três residências artísticas que a T.F. Cia de Dança realizou na cidade de São Paulo. A troca entre artistas do núcleo e artistas residentes alimentaram os processos criativos que culminaram na estreia da obra homônima em fevereiro de 2022, no Espaço Canto.
Este agrupamento de ações produz situações que precisam de mais visibilidade para serem discutidas com propriedade. A intenção aqui é olhar com mais atenção para obras coreográficas e performativas idealizadas fora da caixa preta. Qual seria o papel do espectador que entra em contato com obras situadas nessa zona cinzenta? Como se comporta e qual o limite entre o sujeito-fruidor e o sujeito-consumidor frente às obras da contemporaneidade? O próprio conceito de zona cinzenta dá conta das variadas formas de fazer arte fora da caixa preta? De que forma a apreciação estética se dá? Quais as diferenças no acionamento do estado de presença dos artistas e do público em obras situadas nessa zona de incerteza?
Atualmente, tanto o conceito de zona cinzenta quanto o de espectador emancipado (RANCIÈRE, 2010) parecem insuficientes para abarcar toda a complexidade das relações entre obra, artista e público fora da caixa preta. Por esse motivo, ambos serão investigados e ampliados nesta tese. Em um ambiente lido na perspectiva apresentada, o espectador se mantém singular, porém atravessado pelas percepções compartilhadas que o formam. Além disso, é um sujeito que permanece alerta para o fato de que sua leitura da obra não é mais apenas sua, tampouco caracteriza-se como algo individual no sentido de uma propriedade privada – aquela estimulada pelo consumo no capitalismo. Tal espectador entenderia, portanto, que ele também faz parte da obra, tornando-se um “espectador acinzentado”.
[1] “Zona Cinzenta” (“Gray Zone”) é um conceito desenvolvido pela pesquisadora Claire Bishop. Ela define esse ambiente misto entre a caixa preta (teatro) e o cubo branco (museu) como zona cinzenta (2018) ou “50 tons de cinza” (2016). Este conceito aproximou-se da pesquisa sobre instalação coreográfica já em andamento da T.F. Cia de Dança, desenvolvida na obra “Carne Urbana” (2017).