A escuta queer

A escuta ‘queer’

 

Tese mostra como o canto e a postura de Chavela Vargas desafiaram padrões heteronormativos

 

Adriana Vilar de Menezes


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Neste conjunto de imagens e na foto abaixo, à esq., a cantora costarriquenha em diferentes momentos de sua carreira: contra o padrão mercadológico e cativando o público pela estranheza

Acantora costarriquenha Chavela Vargas (1919-2012) pôs à prova sua performance em plena década de 1940, no México, quando começou a interpretar canções rancheras com entonação e estética diferentes do que era, naquela época, tradicional. As rancheras, compostas e cantadas, em sua maioria, por homens, falavam do amor masculino e refletiam a cultura machista daquele país. Chavela Vargas chegou ao cenário artístico vestindo calças e exibindo uma voz mais grave que o padrão então vigente, o que veio a se tornar a extensão de sua atitude disruptiva como mulher lésbica.

“Seu canto transparecia importantes questões contextuais e de gênero. Ela utilizou a voz para expressar e representar o posicionamento subversivo do seu corpo”, afirma Maria Elisa Xavier de Miranda Pompeu, autora da tese “Cantar a resistência: Um estudo sobre o gesto vocal de Chavela Vargas”, desenvolvida e defendida recentemente no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. A tese investigou a vida e a obra da artista nascida na Costa Rica para responder à seguinte pergunta: como escutar a voz pela perspectiva da corporeidade?

O estudo multidisciplinar sobre a postura vocal da cantora levou a pesquisadora a defender uma nova forma de escuta, que transcende aspectos técnicos e fisiológicos para contemplar a voz que reverbera a partir do corpo, da emoção e da subjetividade. “Nós entendemos corpo e voz como indissociáveis.” Sob orientação da professora Regina Machado, especialista em práticas interpretativas, Pompeu utilizou como ferramenta analítica o conceito de qualidade emotiva da voz. Esse conceito, desenvolvido por Machado, busca identificar sentidos produzidos durante a performance artística no uso dos recursos vocais.

Chavela Vargas inseriu em seu canto vocalidades tiradas da fala cotidiana, como choro, riso, gargalhadas, gritos e outros recursos expressivos responsáveis por intensificar o caráter passional de cada canção e por contribuir para a construção de um gesto vocal bastante singular, analisa a pesquisadora. “Nós avaliamos como o gesto interpretativo de um artista agrega sentidos e como brinca com as entoações da fala. A canção, afinal, se materializa na voz”, afirma Pompeu.

“O conceito de qualidade emotiva nos permite observar na voz a utilização de recursos vocais que se conectam com o entendimento emocional do cantor em relação à canção”, diz Machado, que identifica na tese uma importante contribuição para o estudo do canto, no campo teórico.

Pompeu
Maria Elisa Xavier de Miranda Pompeu, autora da tese:
“Não existe uma voz que não seja corpo”

Binarização

Pompeu, que é também cantora e musicista, recorreu em seu estudo a teorias de diversas áreas. “Eu achei que precisava pensar a voz de Chavela sob outra perspectiva, considerando gestualidades vocais que escapam dos padrões heteronormativos”, explica. Lançando mão também do conceito de escuta queer, defendido por autores como Yvon Bonenfant e Daiane Dordete Steckert Jacobs, a pesquisadora se dedicou a entender como o corpo de uma mulher imigrante e lésbica – marginalizado na década de 1940 no México – integrou-se a uma carreira sólida.

A pesquisadora recorreu ainda ao conceito de performatividade de gênero, elaborado pela filósofa Judith Butler e que dialoga com formulações de Michel Foucault sobre a “constituição discursiva das dinâmicas sociais e dos processos de normatização das corporeidades”. Miranda afirma ter ido buscar autores que discutiam a origem da binarização dos corpos. “O estudo da voz também permeia essa binarização. A meu ver, não faz sentido reduzir o processo de escuta de uma voz como a de Chavela Vargas ao binômio homem versus mulher. Por que nos fechamos a esses limites?”, questiona a autora da tese.

No processo analítico, ela investigou materiais fonográficos – canções rancheras, corridos e boleros – e audiovisuais, que auxiliaram na investigação das gestualidades vocais da artista. Pompeu também analisou dados biográficos e o contexto histórico para compreender a dimensão da realização artística da cantora costarriquenha dentro do cenário da indústria cultural mexicana e latino-americana, marcada por demandas estéticas e estilísticas próprias.

Corpo e instrumento

Chavela Vargas transitou entre diferentes camadas sociais, acessou ambientes diversos, conviveu com presidentes e intelectuais mexicanos e chegou a morar com a artista Frida Khalo. “Tudo que poderia ser barreira na sua vida ela transformou em seu ponto forte. Foi contra o padrão mercadológico e cativou o público pela estranheza“, diz a pesquisadora. De acordo com Pompeu, a carreira da cantora e suas escolhas interpretativas e comportamentais fortaleceram sua posição e a elevaram ao posto de ícone homossexual na América Latina. Machado reforça: “Não existe uma voz que não seja corpo. O instrumento é o corpo. Nós buscamos, em nossas análises, aspectos da subjetividade”.

As mesmas referências teóricas foram utilizadas pela pesquisadora em seu mestrado, também orientado por Machado e dedicado ao estudo do gesto vocal de Gal Costa no disco FaTal – Gal a Todo Vapor (gravado ao vivo em 1971). “Foram duas vozes que, nos seus tempos, romperam com muita coisa. Gal fazia voz e violão, cantava rock. Ao mesmo tempo era ‘joãogilbertiana’ na bossa nova e incorporou sem medo a tropicália, com distorções na voz,” diz a pesquisadora. O posicionamento de Gal também tinha caráter subversivo. “Ela usava roupa com a barriga exposta, calça, cabelos soltos e batom vermelho”, lembra Pompeu, que, ao analisar o canto de Chavela Vargas, foi além dos arranjos musicais e da concepção da obra da artista para abarcá-la de forma multidisciplinar.

“Quando estudei a vida e a obra de Chavela, percebi que só o estudo musical não bastava.” Graduada em jornalismo e em música popular (canto), Pompeu toca cavaquinho e canta samba. “Tive também que abrir minha escuta para fazer uma tese sobre Chavela Vargas, para sair das caixinhas do que é certo ou errado no canto, o que é desafinado ou não. Grande parte dos professores de canto ainda não sabe como lidar com isso.”

Para falar dos corpos queer, defende Pompeu, é preciso considerar que a voz sofre as mesmas transformações que o corpo. “A gente só fala dos corpos LGBTQIA+. Mas e a voz dessas pessoas? Eu trouxe reflexões sofre isso”, diz a musicista, que já ouvia a cantora costarrique- nha desde a infância, porque a artista fazia parte do repertório musical da sua família materna. “Mas a escutei mesmo a partir do filme Frida, em 2002. Ela teve uma paixão pela Frida, com quem conviveu bastante tempo. No filme ela atua e também está na trilha sonora. Escutei-a e me impressionei com a sua voz. Ela colocou o corpo em lugares em que a mulher não podia entrar”, descreve.

Em sua longa carreira, Chavela Vargas foi fiel às suas escolhas como corpo desviante dos padrões heteronormativos. “Chamei de ética de cantar-se. Ela foi coerente com seus desejos”, diz Pompeu. “O canto foi o veículo de negociação dela com a sociedade. E o resultado disso é uma obra maravilhosa”, conclui a autora da tese.

 

Publicado originalmente no Jornal da Unicamp, edição 703.