Grassmann, o gravador.

Gravuras são obras para serem olhadas de perto, pois não são fáceis de serem absorvidas rapidamente. Seu processo construtivo é lento e feito com sobreposições de camadas de matéria gráfica e faz com que seja quase impossível observá-las em grandes quantidades ao mesmo tempo e conseguir reter em nosso imaginário cada detalhe dessas camadas. No mundo em que vivemos hoje, cada vez mais rápido e mais conectado com o aqui e agora, a identificação entre técnica e conhecimento tem se tornado cada vez mais tênue. Tudo parece pronto apenas com um toque dos dedos e isso dificulta essa lenta fruição. Até o século passado, essa identificação era clara e a construção do conhecimento era resultado de uma reflexão sobre o uso das diferentes técnicas e linguagens, entretanto a rotineira mecanização de nossas ações faz com que não sejamos capazes de olhar lentamente para as obras. Precisamos destacar que durante todo esse período foram feitos inúmeros experimentos e se ensaiaram numerosas ideias e técnicas, muitas delas extremamente eficazes e interessantes em termos práticos, mas que desapareceram inevitavelmente quando surgiram novas tecnologias. Não existe, porém, nenhuma evidência de que a importância artística de uma obra não é dada pela inovação do meio utilizado e sim pela qualidade do cérebro e das mãos que utilizam tais meios. E aí iniciamos nossa conversa com o cérebro, mãos e a inquieta curiosidade deste mestre gravador que construiu uma obra única potente. Em minha opinião, Marcello Grassmann é um dos mais importantes gravadores brasileiros. Algumas de suas obras revelam com maestria uma força evocativa e misteriosa de uma visão de mundo peculiar e assombrosa, povoada por seres fantásticos e demônios. Sua sólida formação, primeiramente como artesão e depois como artista, foi aos poucos constituindo uma espécie de arquivo mental com imagens e ideias que se tornaram uma fonte inesgotável para a construção de sua obra. Uma de suas obsessões, a exemplo de outro monstro sagrado da gravura, Pablo Picasso, era conseguir na imagem gravada e impressa a mesma espontaneidade do desenho, tarefa difícil de alcançar em função das ferramentas e ácidos utilizados na gravura. E aí surgiram as ‘novas’ maneiras de gravar, como por exemplo, a linha em água-tinta, resultado de uma investigação a partir do princípio técnico do liftground. A fluidez e espontaneidade desejadas estavam ali e eram capazes de conduzir nossa atenção ao interior daquele espaço mágico e denso onde os olhares dos personagens nos instigam de maneira inquisidora. É importante ressaltar mais uma vez que a técnica em si não representa nada: é apenas um meio para tornar visível o desejo do artista, mas é através dela que percorremos hoje essa aventura. A Coleção Grassmann foi o ponto de partida escolhido para a criação do Gabinete de Estampas da Unicamp não por acaso, considerando-se a riqueza deste acervo e a possibilidade de aproximá-lo da comunidade artística e acadêmica locais. Tínhamos objetivos claros: nosso desejo era despertar novos cérebros e mãos para um caminho de invenção criativa e atuante, conduzir para a construção de um conhecimento sensível tão fundamental para a constituição de um futuro melhor e mais significativo para todos nós e principalmente desfrutar do prazer enorme que é poder conviver com esse poderoso universo transformador da arte.

Lygia Eluf

Setembro de 2022