Sobre Marcelo Grassmann

SOBRE MARCELLO GRASSAMANN: pela poética da linha no desenho e na calcogravura.

Claudio Luiz Garcia

 

Enquanto criador, eu olho a obra de Marcello Grassmann e vejo um caminho para buscar uma interpretação fenomenológica de seu desenho e de duas gravuras que tenho em minha casa. O criador que sou se resume em gravador e desenhador, que vai comentar para investigar um sentido de serem professor e pesquisador de processos de criação em poéticas visuais. Assim, meus comentários estão dirigidos para três obras do artista: duas calcogravuras e um desenho. 


Encontrar capacidades de juízo a partir de uma suspensão do julgamento das figuras, das relações espaciais entre elas, das manchas e da imaginação perturbadora do artista foi minha preocupação para alcançar a força interpretativa das obras em questão. Quando encontrei essa suspensão de juízo, esse estado quase alterado de consciência apareceu um único elemento em comum nessas obras selecionadas, isto é, a linha, desenhada e gravada. Ela apareceu em minha consciência como um problema de criador. A partir daí, formulei uma questão diante do que se mostrou, a saber: Qual o sentido da linha de seu desenho na calcogravura? Para responder, pensei na poíesis, da qual resultaram coisas externas aos trabalhos que se distinguem da práxis, pois a primeira (poíesi) se apresenta como um processo de criação artística, e a segunda (práxis), como produtora de coisas dissimuladas que não geram prosseguimentos. Portanto, a poética da linha, como tradução de poíesis, foi o único caminho encontrado para comentar as obras de Grassmann.

Busquei essa tradução na “verdade” da linha sob um ponto de vista fenomenológico, ou seja, a partir do fenômeno que apareceu em minha consciência antes do conceito. Este aparecimento dessas “verdades” seguiu o ponto de vista heideggeriano.

O “sobre” _ uma preposição retirada do título _ ganhou o sentido indicado por Martin Heidegger (1969, p. 14), quando responde a seu interlocutor: “No título de seu trabalho ‘Sobre a Linha’, ‘sobre’ significa algo assim como: para além de trans, meta. As observações que seguem entendem, pelo contrário, o ‘sobre’ apenas na acepção de: de, Peri”. (Op. cit.) Adotei a mesma direção e me situei no mesmo pensamento de Heidegger, quando este escreve o texto “Sobre o problema do ser”, em 1955. Em seu processo de pensar interrogando constantemente, ele atribui um sentido à palavra ‘sobre’, o qual eu adotarei neste texto. Sempre me situei em volta de Grassmann, tanto pelas obras quanto pela amizade com o qual travei nos últimos anos de sua vida. Isto não foi só um privilégio imprevisível, mas um aprendizado inesperado, adquirido no final do meu doutorado, em 2010. Dessa maneira, permaneci em torno de sua obra, olhando em sua periferia.
 

Evidentemente, em torno da linha há figuras, manchas, espaços, no entanto, esse haver linhas me mostra um campo sem limites, pois elas não criam divisões de espaço na folha de papel, mas configura uma poética visual, um processo de criação artística singular e histórico, ao mesmo tempo.

 

Quando ele traça a linha na calcogravura, não encontra, na água-forte, a melhor solução técnica. Encontrou a questão para interrogar este problema e “desencobriu” um jeito próprio de gravar sua linha, em água-tinta, por meio do lift ground. Desencobrir significa, aqui neste texto, a aparição de algo que lhe ocorreu, menos como solução técnica e mais como fluxo de desejo no qual nada faltou. Assim, não satisfez o seu desejo somente porque havia falta de adaptação de sua linha à água-forte, mas desencobriu uma força no próprio fluxo.

A ideia que gerou este texto está dividida em três tempos: Da gravura; Dos acontecimentos gerais; e Do mundo da minha casa. Estes tempos foram pensados e particularizados por meu hábito visual diante de um desenho e de duas calcogravuras.

Considerei o tempo “Da gravura” não como cronologia do desvelamento de um mistério detido na linha. “Dos acontecimentos gerais” surgiu de um pensamento em torno de uma breve consideração biográfica do artista, que passa, em seguida, para uma apresentação “Do mundo da minha casa” como prótese de um habitar poético. O mundo da minha casa de pesquisador constitui, assim, o habitat do criador e professor de gravura.
 
O primeiro olhar que eu, geralmente, estimulo nos estudantes é para o encavo das linhas na matriz. Sugiro imaginarem um microscópio a mostrar o fundo das cavidades gravadas. A pequena abertura do encavo, na superfície, revela o fundo côncavo que molda a linha convexa, quando impressa sobre o papel. Concreta e fisicamente, há uma relação microscópica entre o espaço vazio e a tinta que se deposita na cava para imprimir o côncavo da linha. 
 
Eu provoco os estudantes a pensarem sobre um mundo profundamente pequeno, com dimensões perceptivelmente visíveis apenas pelo microscópio imaginado no tempo. A relação entre os estados visível e invisível, perceptível e imaginado, evoca uma vizinhança com o tempo de olhar que mexe com as palavras. 
 
Quando olho para o desenho de Grassmann, como criador, minha percepção é a de ausência de relevos, de texturas, mas não de tempo poético. Depois, olho para as gravuras de soslaio, de frente, e observo as texturas como uma passagem através da qual me movimento do desenho às gravuras, ou vice-versa. Enxergo instâncias que medram mundos infinitamente pequenos entre cavidades da matriz e protuberâncias na cópia. Quando Grassmann revira o fundo do encavo e mostra em relevo, a linha impressa, eu sinto que está potencializando o desenho na calcogravura. 
 
O meu olhar ignora as figuras, bem como suas relações de representação, e permanece nessa movimentação como um escrutinador obsessivo que busca me comunicar menos pelo senso comum do que pela ambiguidade. Não uso, aqui, o termo ambiguidade com uma intenção expressa de dissimulação e de deturpação dos sentidos, porque não se trata somente da minha consciência dessas obras, mas delas próprias, que, em si mesmas, são ambíguas.

1. Da Gravura

 

Da gravura eu retirei os meus últimos medos. Se na xilogravura a poética me sugere cavar luz na escuridão, na calcogravura a indicação é cavar escuridão na luz. Enquanto criador, eu olho para a obra de Marcello Grassmann e reconheço o sinistro do qual retirei o meu último medo, a saber: o de fazer gravura em metal. Quando olho para o seu desenho, vejo uma linha, e para a gravura, a poética da linha. 

Em algumas gravuras, Grassmann mostra um tipo de linha gravada que me surpreende, não pela técnica, em seu sentido tradicional de meio pelo qual se chega a um fim, mas por esta desvelar e fazer aparecer um mistério. Nesse sentido, Heidegger (2012) afirma que: 

 

A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de nós todo outro âmbito para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da verdade (HEIDEGGER, 2012, p. 17). 

 

O desencobrimento da linha em água-tinta dá-se pela solução técnica, mas esta é apenas coadjuvante. O mistério de sua poética é incognoscível, porém, emerge ao se desvelar o conhecimento íntimo da linha. Entretanto, o cerne enigmático ainda continua no “porquê”. Provavelmente, havia algo que o incomodava na água-forte. O encavo no metal, dependendo da profundidade em relação à superfície da matriz, não se abria para o que ele procurava. A linha gravada na calcogravura, quando feita por uma incisão rápida, não muito profunda servia-lhe para potencializar suas figuras, mas a linha, sua obsessão, precisava falar mais alto do que as figuras. A única saída seria a profundidade, o tempo de gravação no ácido, mas, quando o encavo era mais profundo, a forma da figura se sobrepunha à linha. Grassmann era um pesquisador inquieto. 

A poética da linha ou, de outro modo, a pesquisa do “como” ele gravaria sua linha em água-tinta foi uma possibilidade de abertura que ele esperava e que aconteceu. Forçado, talvez, por sua própria ideia de limite da água-forte, não se apoiou na forma que o encavo possibilitou, mas no mistério de sua linha como simples recurso propiciado pelo gesto espontâneo e simples – sem virtuosismo ou qualquer malabarismo de um prestidigitador ao desenhar.

Encontrou, assim, a solução mais genial, mas também simples, que buscou do seguinte modo: usou uma anilina para tingir tinta de parede, acrescentou detergente e, com uma caneta a bico de pena, desenhou como se essa tinta fosse de caligrafia. Secou esse material no fogão, aqueceu a chapa e, depois disso, encobriu a superfície da chapa com asfalto diluído em querosene, que borrifou com um compressor. Precisava de uma película muito fina que encobrisse a linha e a fizesse se soltar da chapa quando embebida em banheira de água, levantando, assim, a película asfáltica que permanecia sobre ela. Quando a linha ficou livre do asfalto, desvelou-se a superfície do cobre ou matriz. Finalmente, desengordurou a linha e acrescentou breu nessa brecha, aquecendo, pela última vez, a chapa. Assim, criou a linha em água-tinta ou em lift ground

 

Essa descrição, que pode ser confundida com a busca de Grassmann apenas por uma solução técnica, parece-me a intenção potencializada pela intensidade com que se envolvia em sua poética. Desse modo, parafraseando Deleuze (1991, p. 132): extensão, intensidade e indivíduo se manifestaram por meio de uma das abstrações do pensamento imaginativo de Grassmann, que criou um suposto caos e, a partir de uma sucessão de crivos e autocríticas, aproximou o desenho da calcogravura com uma espontaneidade de gente do interior, ou seja, excessivamente sincera. Esse indivíduo, talvez, um pouco antissocial, criou sua mundanidade de artista.

 

A gravura, como parte dessas mundanidade, revelou a elucidação da coexistência de indivíduos, artistas, pesquisadores. Portanto, a calcogravura, o desenho e o artista apareceram compatíveis entre si, e linha e processos de criação artística fundiram-se no singular e anacrônico modo de ser. Grassmann foi um artista anacrônico. Não que tenha cometido um erro de cronologia, nem que tenha sido retrógrado, mas um artista que viveu intensamente o alheamento da contemporaneidade.

2. Dos acontecimentos gerais
 
Os acontecimentos de sua época fizeram-no um desterrado em relação à arte contemporânea, não um prisioneiro monástico, mas um prisioneiro de sua linha, de seu mistério profundo de entalhador, xilogravador. Assim, de uma sucessão de crivos, de acontecimentos, surgiram a gravura em metal, a obra e o artista.
 
Grassmann saiu do interior do Estado de São Paulo, viveu na Capital e foi até a Europa. As figuras que criou resvalaram em mistérios do Renascimento, do Barroco e até da Arte Moderna europeia, sempre que sua obra necessitasse desses conceitos. A linha continuou como um mistério singular de suas figuras, as quais podem coexistir, historicamente, a partir de Leonardo da Vinci, Rembrandt, Bosch, Goya, Picasso, Kubin, Kokoschka, Schiele

 

Não houve sucessão, mas a obra de um artista inquieto. Indagar por uma etiologia para saber o que deu origem a quê, a história ou a obra, parece brincadeira de criança de interior: Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Então, pergunto: O que fez dele um artista? A obra. Mas a que a obra remete? Respondo: À arte e ao confronto de um indivíduo do interior com a cultura europeia.
 
Entretanto, cabe, aqui, apenas a indicação de uma de minhas leituras de Martin Heidegger, a saber, A origem da obra de arte

Origem significa aqui aquilo a partir do qual e através do qual uma coisa é o que é, e como é. […] Através da obra; pois é pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra é que primeiro faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente. Artista e obra são em si mesmos, e na sua relação recíproca, graças a um terceiro, que é o primeiro, a saber, graças àquilo a que o artista e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças à arte (HEIDEGGER, s/d, p. 11).

 
No entanto, abri essa brecha, a da biografia, e saí rapidamente dela para não me perder em “círculos crescentes” e caminhar “sobre as coisas” de Rilke, como é meu hábito. Como não posso me distanciar da obra de Grassmann, reconduzo-me aos acontecimentos aqui assinalados. Assim, retorno à reflexão sobre a linha. 
 
Para analisar a poética da linha, pensei em seu braço, punho e mão enquanto desenhava. Quem fez a linha? Quem fez o gesto? Evidentemente que não foram o braço, o punho e a mão, mas uma mente inquieta em trânsito para a serenidade. Corpo, mão, desenho, gravura são partes do mundo de sua poética em minha casa. 

Ele era o artista de uma estética definida antes de ser teoria. Eu sou o criador que pensa nessa suposta poética da linha como parte do mundo da minha casa, dentro do qual suas gravuras e seu desenho constituem uma das paredes, não do ponto de vista arquitetônico, mas do hábito visual de pesquisador que sou, enquanto criador.

3. Do mundo da minha casa

 
Minha casa e meu hábito de morar criam um mundo condensado por mistérios revelados nas obras aqui enfocadas, para habitar poeticamente. 
         

Persigo, então, alguns sinais nas obras, desvelados graças ao meu hábito visual nascido da convivência com as mesmas, aqui destacadas, porque as tenho diante de mim, em meu campo habitual de visão. Trago, aqui, a afirmação de Nelson Rodrigues (1997, p. 126): “Paisagem é hábito visual. Só começa a existir depois de 1.500 olhares”. Os sinais do hábito condensam-se na referência à linha que vejo diariamente.

O sinal e a referência coexistem no hábito de olhar. Nas figuras de Grassmann, aparece uma fantasmagoria do sinal de artista singular referente à História da Arte. Há, sim, uma referência explícita à cultura europeia, mas com sinais sinistros de sua imaginação de ser canhoto, embora ele não usasse a mão esquerda e a alcunha de artista sinistro lhe tenha sido imposta.

Considerações finais.
 
Preciso destacar, neste final, que a gravura não é uma linguagem em terceira dimensão, pois seus relevos não podem ser, a meu ver, mensuráveis em relação à altura da linha impressa, mas, sejam eles perceptíveis a olho nu ou não, dão à gravura uma linguagem de transferência, da matriz ao papel, do desenho à gravura, do artista à obra, do pequeno espaço bidimensional ao imperceptível mundo da tridimensionalidade. É neste ponto que assinalo o final destas reflexões e, sejam elas certas ou duvidosas, não importa, o fato é que são aberturas de possibilidades em condições de coexistências, quer seja do tratamento de polos opostos não como complementares, como de coexistências de contrários sem contrariedades.
 

Da espessura da linha do desenho ao pequeno relevo da linha da gravura, vejo também a quarta dimensão do espaço, a saber, o tempo. A primeira noção de tempo que me aparece é a das horas ou minutos de gravação das linhas no ácido. Não é a esse tipo de cronologia que me refiro. Cada gravador, depois de muito experimentar, cria hábitos de tempo por sua vontade e disposição de criar mundos.

Referências

 
DELEUZE, Gilles, A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, SP: Papirus, 1991.

 

RODRIGUES, Nelson, Flor de obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues. Ruy Castro (org.), São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

 

HEIDEGGER, Martin, A origem da obra de arte. São Paulo: edições 70, s/ data.

 

____________, Sobre o Problema do Ser; O Caminho do Campo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969.

 

____________, Ser e Tempo. Campinas: Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012.