Estereoretratos

ELOGIO DO DUPLICADO

BERNARDO KRASNIANSKY

Nesta mostra, Bernardo Krasniansky reflete sobre o retrato, capítulo clássico da história da arte universal e prestigioso ramo do grande itinerário acadêmico. É uma reflexão insidiosa: pretende mais ocupar-se dos conflitos da reprodução do que dos valores da semelhança. É sabido que fixar a imagem de uma pessoa é muito mais que dar feitio ao equivalente icônico das suas feições e dos seus traços físicos; é, sobretudo, propor uma interpretação dessa pessoa: a versão de um tom do seu olhar, a descrição de um atributo do seu caráter, a inferência daquele segredo irredutível que preme os ângulos do rosto, marca rugas e vãos, acende luzes breves ou vela a expressão por um instante. E é, sobretudo, uma cópia, uma tentativa de — a partir dos encantos da admiração ou da vaidade, dos interesses da adulação ou das obscuras razões do poder — convocar o personagem retratado, repetir sua presença, re(in)staurá-la.

Por isso, pintar, esculpir ou montar fotograficamente um retrato se transforma na construção de outra figura: numa duplicação do original que se torna, por sua vez, ela mesma, original. Essa erronia {se achar que fica rebuscado demais traduzir yerro assim, ponha erro mesmo, ou desacerto} inaugural ocorre porque o artista descobre aspectos do retratado só retratáveis da sua posição singular, mas também porque o próprio artista se auto-retrata no retrato: ele se reconhece no olhar olhado, levanta um espelho sobre o papel ou a tela calados. Então, aquele gesto criador que pretendia representar o rosto e ocupar seu lugar acaba duplicando o retratado. Tal desdobramento resulta de toda representação, que nunca pode fazer coincidir o perfil do signo com o contorno do referente, mas no caso do retrato a tensão se torna mais intensa porque ambos os rostos disputam a supremacia do sentido, opondo os argumentos da originalidade, de um lado, e as razões da permanência e da forma, de outro.

A obra de Krasniansky sempre trabalhou o pleito que confronta o signo e a coisa. Agora encara o paradoxo do retrato desdobrado usando de diversos engenhos. Apela, de um lado, para a estereografia, procedimento oitocentista orientado para gerar a impressão de volume a partir da visão superposta de duas imagens: os Estereorretratos se baseiam em duas imagens similares obrigadas a formar uma só; forçadas a suturar a cisão que o retrato produz. De outro lado, Krasniansky desorienta os trâmites da representação, introduzindo sucessivas mediações em seu processo. Baseia-se nos retratos escultóricos de duas mulheres: um, realizado por Desiderio da Settignano, outro, por Francesco de Laurana. Ambos os bustos são sucessivamente tratados e re-tratados mediante expedientes icônicos superpostos que partem, seja do busto real, seja da sua réplica ou da sua reprodução num livro de arte, e se desenvolve através de mediações fotográfica distintas.

Grande parte da estratégia figurativa de Krasniansky trabalha a superposição de sucessivas camadas de linguagem que vendam o real e deslocam suas verdades. É a cópia um duplo da coisa, é sua sombra, sua contraface, o perfil da sua ausência? É seu retrato, no sentido mais essencial do termo? Krasniansky maneja todas essas possibilidades e apresenta-as de forma simultânea: o retrato é uma máscara que sempre encobre outra, e mais outra; é o simulacro, uma cópia com pretensões a se apossar da verdade do copiado; é uma defesa contra a deterioração do tempo; um testemunho do que terá que deixar de ser, estivesse ainda tão presente; o registro de uma troca de olhares, por um instante coincidentes e encontrados.

A série Pintura Holandesa, que integra esta mostra, segue outro caminho para salvar a clonagem que o retrato gera. O artista havia encontrado um livro sobre a pintura da Holanda publicado em 1920, na França. A obra era ilustrada com reproduções em preto-e-branco realizadas por meio de clichês. Cada ilustração vinha protegida por uma folha que, com o passar do tempo, foi envelhecendo e, com suas cores oxidadas, imprimindo em negativo a imagem da página em face. Esse fato casual permitiu que Krasniansky trabalhasse o poder duplicador da marca: novamente os retratos aparecem face a face com seus duplos, seus rastros ou seus fantasmas. Mais uma vez se desdobram e mais uma vez devem ser confrontadas, obrigadas a dar conta do enigma do duplicado.

A obra Dois bronzes pompeanos recolhe um acidente ilustrativo dos mal-entendidos da cópia (do seu pecado original, da sua verdade final): duas esculturas sofrem acasos distintos; uma delas conserva cabalmente sua feitura; a outra vê perturbada sua inteira vocação: sendo grega de origem, tem a cabeça trocada por uma romana, cujas proporções não coincidem com os cânones do corpo, e converte a obra num campo de tensões, numa versa híbrida de si mesma — a metáfora da ambigüidade radical do retrato. O indecifrável signo da diferença, talvez. Sitiado por avalanches de imagens virtuais e promíscuas mensagens, sepultado por camadas de símbolos sobrepostos, a realidade contemporânea está posta em tela de juízo e está em questão o valor do original fundador. Por isso, mais que desvelar-se pela coerência da linguagem e pelo sentido instituidor do autêntico, o artista de hoje se preocupa com a contingência do real ameaçado e olha com atenção para os indícios turvos que o simulacro lança. A partir dessa preocupação e vislumbrando esses sinais distorcidos, Krasniansky reivindica a verdade alterada do retrato e revela em seu fazer a impossível unidade do nomeado, a duplicidade da presença, as réplicas do ser em retirada.

Ticio Escobar  /  Assunção, julho de 2001

Tradução do texto: Eduardo Brandão

Exposição: 06 a 11 de novembro de 2005