Metáforas do Vazio e Passado e Presente, a África e o Ocidente

Duas exposições, diálogos possíveis.

São muitos os desafios em realizar duas exposições distintas que compartilham uma mesma galeria. Esses desafios se tornam ainda maiores quando uma das exposições está relacionada à arte africana e a outra à arte afro-brasileira. Há o risco de sugerir que uma seja o desdobramento da outra, algo como uma continuidade da África no Brasil, o que nesse caso seria impertinente.

As duas exposições foram pensadas de forma autônoma, o que não invalida refletir sobre os diálogos existentes entre elas. Sem dúvida, tanto a exposição Passado, Presente, África e Ocidente na coleção Rogério Cerqueira Leite quanto Metáforas do Vazio. O Paraíso tropical de Rosana Paulino lidam com a ideia de incômodo.

A primeira por escancarar o quanto a África é nossa desconhecida, apesar dos profundos laços históricos que mantemos com o continente. Tal incômodo também pode ser sentido pela exibição de obras que geralmente não fazem parte do repertório de grandes exposições. Elas não necessariamente correspondem à ideia de arte africana consagrada pelo ocidente, que é validada, sobretudo se cumprir requisitos como antiguidade, uso e função e ausência de influências externas que possam interferir no fazer artístico.

Na segunda exposição há o incômodo em lidar não apenas com a memória da escravidão, mas com a forma delicada com que Rosana Paulino aborda tema tão doloroso e brutal. O efeito dessa aparente incoerência ou contradição denuncia que não há escapatória. Suas obras revelam que, para além do desconforto, não existe outra opção a não ser lidar com as consequências e desdobramentos de um passado que tentamos esquecer, mas que tem no racismo a sua mais nefasta e presente herança.

Ambas as exposições apresentam obras em que a relação entre passado e presente está materializada de muitas formas. Na série Paraíso tropical, Rosana Paulino evoca o passado com fotografias de mulheres escravizadas cujos rostos dão lugar ao vazio. Esse vazio é atualizado no presente ao possibilitar que mulheres negras se vejam nessas faces e se identifiquem nas feridas compartilhadas que insistem em não cicatrizar.

As máscaras e estatuetas da coleção Cerqueira Leite reúnem em si o passado e o presente de diferentes maneiras: em versões contemporâneas de produções artísticas restritas a um período específico da história da África, ou em obras feitas recentemente, mas que forjam uma ação do tempo para projetá-las em um passado definido pelaprópria indefinição. Além disso, todas as obras remetem a uma tradição estilística e formal.

E finalmente, as duas exposições exibem produções que ainda possuem pouco espaço em instituições culturais no Brasil. Sem dúvida a arte afro-brasileira está cada vez mais ocupando os lugares de prestígio e a discussão sobre ela vem sendo ampliada de forma considerável. Já a arte africana caminha a passos lentos no país, apesar de alguns avanços. Nesse sentido, se uma exposição não é o desdobramento da outra, a África ou a sua herança no Brasil parece ser um elemento comum para explicar essas ausências.

 

Metáforas do vazio. O Paraíso tropical de Rosana Paulino.

Em uma trajetória artística construída de forma coerente e marcada por notável consistência, Rosana Paulino tem se dedicado em suas produções à reflexão sobre a invisibilidade e o não reconhecimento dos negros, sobretudo, das mulheres. Em muitas de suas obras o passado, seja através de fotografias de familiares ou por registros do período colonial, parece ser o grande mote para entender as profundas ranhuras e feridas herdadas da escravidão que teimam a acompanhar a população negra até os dias de hoje.

Na série Paraíso Tropical, o passado é evocado por Rosana Paulino por meio de imagens de mulheres escravizadas cujas lentes dos fotógrafos das colônias perpetuam em posições fixas e rígidas, descortinando quem detém o domínio sobre seus corpos. O mesmo domínio torna-se evidente quando a artista aprisiona as mulheres em herbários, simbolizando a necessidade da ciência de classificar e hierarquizar o mundo, o que se estendeu aos povos de origem africana.

Com grande sensibilidade, as mulheres apresentadas por Rosana Paulino não têm rosto, no seu lugar fica um incômodo vazio. Ao remeter ao passado, esse vazio se faz metáfora para o anonimato, para o esvaziamento da história individual de cada uma dessas mulheres escravizadas. No presente, esse espaço vazio é como a projeção de um espelho, onde as mulheres negras se veem e se reconhecem em uma imensa dor compartilhada.

Rosana Paulino não parece interessada apenas em impedir que a memória do período da escravidão seja esquecida e apontar que esse longo e terrível momento da nossa história esteve respaldado pela cientificidade. A artista almeja, sobretudo, denunciar como seus nefastos desdobramentos sobrevivem e atuam no presente. E sugere que nos perguntemos de quem e para quem é esse Paraíso Tropical.

 

Passado e Presente, a África e o Ocidente na coleção Rogério Cerqueira Leite.

A coleção de arte africana de Rogério Cerqueira Leite apresenta um expressivo conjunto formado durante mais de trinta anos composto de obras de tipologias e materiais, com temporalidades e propósitos diversos, que nos permite explorar questões pertinentes à história da arte africana, além daquelas vinculadas à etnologia. A coleção reflete a complexidade dos povos do continente que a produziu e as suas obras colaboram para a desconstrução de um imaginário sobre a África produzido pelo ocidente europeu.

Apesar de muitas coleções de arte africana – como o pequeno conjunto de obras aqui exibido – estarem vinculadas a uma temporalidade ligada às intensas transformações vividas pelo continente africano no período colonial e na contemporaneidade, de forma geral, quando exibidas são acompanhadas de legendas e textos explicativos que as projetam num passado africano fictício e idealizado pelo ocidente, onde as sociedades africanas seriam intocadas, puras e autênticas.

A exposição Passado e Presente, a África e o Ocidente na coleção Rogério Cerqueira Leite propõe um exercício de reaproximação com essas obras, situando-as no presente e trazendo à tona as muitas questões que elas suscitam. O presente é o lugar de obras feitas para seu uso em cerimônias celebradas por suas comunidades. Ao mesmo tempo, o presente é o lugar de uma produção de máscaras que não foram feitas para uso nas danças e de estatuetas que não foram produzidas para serem cultuadas pelas comunidades a que remetem. Isso não significa, entretanto, afirmar que essas produções estão vazias de sentidos e de valor artístico.

O presente também é lugar de produção de obras que apresentam um conjunto de elementos que forjam antiguidade e uso pelas comunidades locais, como sangue, terra, óleo de palma, entre outros, a fim de suprir a demanda de colecionadores e de museus sequiosos por relíquias de um passado imaginado. Em sentido semelhante, esse presente é também lugar de uma produção que tem o cuidado de remeter de forma direta, às obras de arte africana consagradas pelo ocidente classificadas como obras-primas, não raro, guardadas e exibidas em museus europeus ou estadunidenses.

O que se pretende mostrar é que todas essas obras apresentam múltiplos sentidos e significados e, por isso, podem ser apreendidas de muitos modos. E podem dizer bastante sobre a África e muito sobre o ocidente. Dizem demasiado sobre o passado e, sincronicamente, muito sobre o presente.

 

Para além do uso e função: as obras de arte africana da coleção Rogério Cerqueira Leite

As obras aqui apresentadas instigam a pensa-las para além do seu tradicional uso e função. Muitas não foram feitas para serem usadas pelas comunidades a que remetem, mas todo o conjunto elucida a diversidade estilística e formal encontrada no continente africano. Essa variedade pode ser notada, por exemplo, no penteado cruciforme da estatueta hemba; na mandíbula articulada da máscara ogoni; no nariz alongado típico das obras baulê; e na projeção do corpo do par de Ibejis, com destaque para as mãos, que pousam na região dos quadris.

As obras evocam o passado, mas ao mesmo tempo suscitam questões contemporâneas relacionadas às demandas e repostas que envolvem a sua produção e a circulação desses objetos dentro e fora da África. Nesse sentido, destacam-se duas versões de obras consagradas pelo ocidente pela sua raridade e primor técnico e artístico: uma cabeça de Ifé, e uma máscara em marfim, dos edos, ambas da Nigéria.

A cabeça em liga metálica apresenta no seu topo uma espécie de coroa, indicando se tratar da representação do Oni (rei) de Ifé. A face estriada e os pequenos orifícios ao redor dos lábios não deixam dúvida que a obra foi feita tendo como base a cabeça de Ifé do acervo do British Museum. Consideradas uma das mais importantes obras-primas da arte africana, as cabeças de Ifé foram encontradas de forma casual na primeira metade do século XX em momentos distintos. Todos esses achados arqueológicos confirmaram o que até então era negado aos africanos: a capacidade de produzir obras realistas.

O impacto que esses achados provocaram no ocidente pode ser entendido através das histórias envolvendo o furto, as negociações ilícitas e o desaparecimento de algumas delas. Ao contrário das demais obras-primas da arte africana, que se encontram principalmente em coleções de museus da Europa ou dos Estados Unidos, a maioria das obras de Ifé, que são datadas entre os séculos XII e XVI, permanecem ainda hoje nos museus nigerianos.

A máscara em marfim apresenta um barrete ornamentado no seu topo com pequenas figuras humanas representando os portugueses. Na região da testa há duas formações retangulares paralelas, provavelmente onde um cinto ou colar era perpassado. A sua parte inferior está acompanhada por uma gargantilha. Todos esses elementos não deixam dúvida que a obra foi esculpida tendo como base a famosa máscara em marfim dos edos, também pertencente à coleção do British Museum. A obra do museu britânico e algumas outras poucas máscaras que compõem um restrito conjunto são datadas do século XVI e pertenceram ao reino do Benim, na Nigéria, até 1897, ano em que os ingleses organizaram uma expedição punitiva contra esse reino, saqueando milhares de obras que ocupavam o palácio real. Essas máscaras representam a rainha mãe e são consideradas algumas das mais icônicas obras de arte africana, dado o seu refinamento escultórico e riqueza de detalhes.

Tanto a máscara em marfim quanto a cabeça de Ifé do acervo do British Museum são exemplos importantes para refletir sobre questões relacionadas à não circulação de obras-primas da arte africana fora da Europa ou dos Estados Unidos. Essas obras retornam ao continente africano apenas através de suas fotografias publicadas em catálogos e livros especializados. Lá essas obras são materializadas em suas novas versões, como as obras aqui expostas, encerrando o seu percurso também no ocidente ao serem comercializadas.

Em um sentido diverso podemos compreender a máscara Mukuji, dos punus, que vivem no Gabão. Conhecida por representar uma figura feminina com os olhos semicerrados, a máscara Mukuji apresenta um elaborado penteado que destaca o seu rosto coberto de pfemba, uma argila branca de uso ritual. Ainda hoje os punus fazem cerimônias usando essa máscara. Atualmente parte delas é feita incorporando tintas industrializadas no lugar de pigmentos naturais, o que demonstra o dinamismo dessas populações.

Ao mesmo tempo, a Mukuji é amplamente oferecida em grandes centros comerciais no continente africano, como em Camarões e Costa do Marfim. Nesses locais, as máscaras comercializadas não são necessariamente versões de obras consagradas, no entanto, elas quase sempre recebem elementos que forjam a sua antiguidade, como é o caso da Mukuji exposta. Além da sua expressividade e beleza, os colecionadores se sentem atraídos por associa-la à arte japonesa, comparando-a, inclusive, com a figura da gueixa.

A máscara Mukuji é elucidativa para reconhecer os múltiplos sentidos e significados que as obras de arte africana ganharam ao longo do tempo, tanto para os africanos quanto para os ocidentais. Pensar essas obras feitas nesse contexto exige lidar, portanto, com essa complexidade, que envolve sempre negociações. Em muitos casos, algumas respostas podem estar indicadas nos próprios objetos. Quando observadas de forma minuciosa, a máscara Mukuji e outras obras da exposição podem surpreender por apontarem em sua própria materialidade indícios, pistas ou sinais de como o passado é evocado nelas, mas sobretudo, de como se dá a construção das redes de relações que envolvem África e ocidente, suas demandas e respostas.

 

 

De 22/03/2018 a 09/04/2018