Modos de Habitar

 


Pesquisa Artística: a casa

Lucia E. Fonseca Ribeiro – Departamento de Artes Plásticas /IA, UNICAMP

Há um ano e meio venho desenvolvendo projeto de pesquisa artística sobre o espaço habitado. Trata-se de vivências para com a casa e seus arredores, que a cada desenho se tornam uma espécie de topografia sobre a intimidade do ser, ou seja, daqueles que a habitam. Bachelard no texto sobre a poética do espaço coloca, em certo momento, considerando imagens e reflexões sobre as conchas e os ninhos, uma questão sobre a casa e seus lugares             que envolve o ato de nos fazermos pequenos como modo de habitá-los: Com efeito, não encontramos nas próprias casas redutos e cantos onde gostamos de nos encolher? Encolher-se pertence à fenomenologia do verbo habitar. Só habita com intensidade aquele que soube se encolher. (Bachelard, 2000, p.21)

Justamente, este conceito de encolher, vem sendo o mote do desenvolvimento desta produção. No dicionário, mais precisamente no Aurélio, o sentido desta palavra não é nada positivo, trata de retrair, contrair, dar pouco espaço, estreitar, refrear-se entre outros mais, no entanto gosto de considerar que o termo encolher, empregado pelo pensador, remete não a situação de perda e nem de ganho, mas “encolher” como modo de se estar consciente na relação com as coisas do mundo, com si mesmo e os outros.

Este é o ponto, o que de fato interessa na conformação do espaço habitado, estar consciente do que se faz do que se sente e por isso encolher/habitando. Há um canto no mundo que é nosso, diz o pensador. E este, adquire um sentido de bem –estar ou de poética do espaço que no percurso da vida, acalenta, resguarda, satisfaz. Porém, é necessário que se tenha cautela para com o que se entende como bem-estar, visto sua concepção refletir aqui nada parecido com descrições dos ambientes e objetos, seu conforto ou aspectos curiosos da morada, mas considerações sobre a existência de um espaço vital e como o habitamos, construindo um modo de fazê-lo, e que no percurso de construção perpassa diversas moradas presentes na memória.

Para reflexão e desenvolvimento dos desenhos venho olhando obras e textos de outros artistas e teóricos como O CANTO de Cildo Meireles e a coreografia e o cenário do Grupo de dança Débora Kolker, realizada a partir da obra do mesmo artista plástico Cildo Meireles.

Produção: O material consiste de uma produção por volta de 50 trabalhos, desenvolvidos em sua maioria sob papel com materiais diversos, na medida de 48 x 32,5 cm e   96 x 65 cm. Somam-se a estes desenhos outros modos de ações, como cadernos de artistas, anotações visuais e verbais, fotografias, instalação e possíveis desenhos/objetos entre outros fazeres. Como complemento, pretendo realizar uma reflexão sobre o trabalho com o intuito de publicar um documento sobre a pesquisa e a exposição.

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Diante das “impurezas do branco”: um olhar para alguns desenhos de Lúcia Fonseca

Os insistentes lances do antebraço sobre o plano, pela escala menor do suporte, sabem que não podem avançar tão longe. A noção do limite carrega o espaço de intensidade. Há um silêncio tenso em cada composição. O silêncio que vem antes da tempestade. O que se esconde sob tantas e tantas camadas de gestos, traços, hachuras e manchas?

E tempo?

Por debaixo dessa matéria gráfica, pictórica e plúmbica – o que habita? Qual o limite entre desenhar e apagar, ou seja – quando cada camada matérica se faz, o que ela faz: reforça o peso da imagem ou apaga o momento anterior? Como se desenho e apagamento fossem dois lados do mesmo suporte. Até quando ele suportará essas ações que se desdizem?

São questões que me enchem os olhos quando vejo algumas composições de Lúcia Fonseca. Detenho-me aqui nas composições menores, realizadas em folhas destacadas de cadernos no formato A3. Um caderno íntegro pode ser lugar para uma narrativa; reforçamos essa suposta linearidade temporal paginando, ou mantendo a encadernação. Trabalhando o desenvolvimento de uma forma no espaço/tempo. No desfolhamento desses cadernos, perde-se tal unidade e narrativa, mas seus vestígios permanecem em desenhos de folhas duplas.

Em alguns dípticos, os orifícios da espiral, um fio esguio de luz ou mesmo as bordas retas dos papeis, ao mesmo tempo em que me dão noção de limite, são impotentes para conter o extravasamento das nuvens. Talvez seguindo o espalhamento das aguadas, os gestos insistentes das matérias duras ultrapassam esses obstáculos; um branco-expectativa parece ser o que detém o movimento.

Principalmente nas duplas com a espiral ausente, uma recombinação diferente das partes destacadas não é possível, dando-me a impressão de que cada unidade foi feita quase que em emparelhamento com a outra; são enantiomorfas entre si. Não que as duas partes sejam “similares”, mas a velocidade de preenchimento de uma parte é quase simultânea a um olhar de soslaio para a outra, ainda em branco. E essa é minha percepção – que desde ali, num olhar que se bifurca, constrói-se uma narrativa: como atravessar para o outro lado?

Como se o mesmo sujeito que desenha, já pressentisse a força do espaço intocado. Um futuro ou um passado em branco, depende da localização da mancha maior. Em um deles, especificamente, a artista não “atravessa” para o outro lado. Ela dá um salto, e cai na extremidade oposta do outro suporte. Cria-se então uma composição singular, em que sua ação parece constituir-se em uma “moldura” para o espaço branco. Espaço esse que é quase próximo, em área, à extensão do suporte em condição inicial.

Nesse sentido, a composição resultante me faz perceber a opacidade do suporte. Em muitas das vezes, ao iniciarmos um desenho, não observamos muito esse momento do suporte intocado; já vamos projetando (em todos os sentidos) nossas informações sobre o plano. Essa composição de Lúcia Fonseca me faz perceber aquele plano relativamente retangular como forma em si, e não somente como “suporte”. Este é um dos momentos em que percebo o “branco” como acontecimento, que dialoga com os procedimentos propriamente gráficos. “Por outro lado”, no momento em que a interferência da direita ocorre bem na extremidade, ela também me informa que poderia haver um desenho “extra-campo”, algo para além da área trabalhada, como um não-dito que resvalou para a mesa de trabalho, talvez.

Há outra combinação de espiral ausente, em que quase todo o espaço foi ocupado pelas intervenções plúmbicas. Neste desenho, chama-me a atenção o ritmo dos brancos – da direita para a esquerda, o valor vai penetrando para o interior das formas, conversando em passagens com outros tons intermediários, até rebater em um minúsculo ponto no centro desta composição, que rebate no centro cavado, pleno de orifícios, espaço de respiração para o enfrentamento da mancha maior, cujo ponto mais iluminado é mais ou menos o rebatimento daquele ponto de luz.

Outras combinações, sem as marcas da espiral, talvez fossem realizadas isoladamente. A “memória” de uma interferência anterior poderia ser um dado a constituir um outro desenho; isso então promoveria o díptico como um “reencontro” de possibilidades autônomas, que guardaram certa familiaridade entre si. Nelas, também uma outra situação para o branco. Todas essas composições lembram-me uma “maneira negra”, técnica de gravura em que a condição da matriz é a escuridão; as formas de luz vão se delineando pela pressão de um instrumento específico. São produzidas então formas de grande riqueza tonal, do mais escuro ao mais claro, em uma textura aveludada.

Dessa maneira, alguns desenhos de Lúcia Fonseca dão-me a sensação de que a condição inicial do suporte era “escura”, mesmo que clara, fisicamente. Uma escuridão profunda, marcada por vestígios de camadas e camadas de manchas, de hachuras aveludadas, de escalas tonais, de um excesso de ações e de matérias, enfim, que enfrentam momentos de luz silente. Iluminam o suficiente para apenas vislumbrarmos formas reconhecíveis dentro daqueles blocos de noite.

Algo me diz que a poética desses desenhos de Lúcia Fonseca relaciona-se ao enfrentamento do branco, de um silêncio do suporte, silêncio, no entanto, que significa. Silêncio corporificado pelo branco. Isto me lembra o dito de Mário Quintana: “antes de começar a escrever, eu olho, assustado, para a página branca de susto”.

Há, pois, o relato poético deste embate com o suporte intocado. Esta alvura adquire então uma carga simbólica forte por conectar-se à condição angustiante que todo início possui. E isto porque não basta deixar o suporte intacto, a poética seria justamente como “reconstruir” esse branco, sendo nele mesmo, outra coisa. Reativá-lo numa operação de ausência de ação gráfica ou mesmo de uma ação que, ao aproximar-se dessa zona, estabelece o embate.

No entanto, há também um outro embate de fundo, pois, se o branco, o “candidus”, simbolizaria a condição dos inícios, é possível marcá-lo como sendo o início do trabalho? Quando realmente se origina? Ou ele – seja como breve suspiro de luz, como descontinuidade do gesto ou como acontecimento emoldurado pela intervenção plúmbica – atingir o branco seria a finalidade desses desenhos?

Há um mistério nessas imagens.

Cláudia França
artista plástica
Campinas, outubro de 2009.